Por Judah Grunstein – Texto do The Atlantic
Tradução, adaptação e edição – Nicholle Murmel
O choque não é menos visceral por ser familiar – como a sensação de mau agouro ao reconhecer que no sonho assustador no qual entramos o pesadelo recorrente. Outra vez, os delefonemas repentinos, o alerta de que o perigo latente novamente tomou forma palpável. Novamente a corrente de mensgens de texto e emails, lenta a princípio e depois tomando vulto, para garantir que caímos em suas garras. De novo, as narrativas tomam forma, mais por natureza do que hábito, apesar de não ser mais tão simples apontar a diferença: onde estávamos, com quem estávamos, o que estávamos fazendo quando descobrimos. Os gestos a essa altura formam um ritual que nós aqui em Paris, assim como em várias outras cidades das quais as cidades de onde as mensagens alarmadas chegam, nos tornamos experts em executar.
E então há os elementos novos que tornam esse episódio diferente, que nos forçam a comparar e por em contraste esse ataque com o último. A angústia dessa vez não foi pelo caráter repentino nem pela surpresa – que, paradoxalmente, era esperada – mas pela democratização da carnificina. A vez passada foi um massacre horrendo seguido de outro dias depois. Agora foi um surto coordenado em uma teia de banhos de sangue ao longo da cidade. No último episódio as vítimas foram escolhidas por quem eram ou o que fizeram. Dessa vez as balas não tiveram mira, foram disparadas a esmo. Da outra vez os valores da nação e de seu povo foram ameaçados. Essa semana é a nação e seu povo em si que estão em risco.
Ainda assim, apesar do ritual de medo e raiva, ou por causa dele, é difícil discernir os temas ocultos que habitam nossas narrativas, os personagens que vagam por esse drama brutal como fantasmas.
Como que ilustrando esse fenômeno ontem à noite, houve o espetáculo macabro de um estádio lotado de fãs de futebol assistindo a uma partida em toda sua glória, completamente alienados da tragédia por conta da sobrecarga e queda na conexão de seus celulares com a quantidade de informação sobre os três relativamente mal-sicedidos ataques suicidas que aconteciam logo nos portões. A transmissão ao vivo do jogo continuou sem interupções ou menções aos horrores daquela noite por parte dos locutores que, como nós assistindo em casa, sabiam o que estava acontecendo. O fato de a partida ser entre França e Alemanha só enfatiza o quanto sacrifícios de sangue passados caem no limbo e dão lugar aos próximos.
Se coloquei todo esse relato no plural confortável “nós”, trata-se de um esforço para evitar oferecer minha própria narrativa da noite cujo horror eu experimentei através da cobertura jornalística via televisão, na segurança do meu apartamento em um bairro confortável londe dos rios de sangue. Mas ao mesmo tempo incluir a raiva que veio logo após o choque e o medo inicial – a sensação de valentia ao deixar meu apartamento e buscar meu filho que estava na casa de um amigo, e a satisfação de saber que minha presença ainda transmite segurança a esse rapaz, quase um homem, que agora consegue olhar para o pai quase na na altura dos olhos. A valentia, outra vez, que me fez sugerir que andássemos até a loja na metade do quarteirão para comprar nosso bolo preferido de chocolate com caramelo, e, de novo, a satisfação de ouvir que meu filho entendeu a mensagem contida nessa minha bravata quase cartunesca: precisamos ser prudentes e atentos de que o perigo é real, ele disse, já de volta ao apartamento, quando perguntei a opinião dele, mas que não há necessidade de entrarmos em pânico e sucumbirmos ao medo irracional.
Se eu procurei evitar dar a minha versão pessoal dos massacres daquela noite, é por causa do meu desconforto com o método que adotamos para essas narrativas, o pathos que usamos para seduzir uns aos outros a dissolver a fronteira que separa o “eu” do “outro”, “a gente” e “eles”, para criar uma identidade comum nesses momentos de trauma ritualístico.
Ainda assim, essa questão do “eu” e o “outro” é fundamental para o drama sangrento se desenrolando ao nosso redor, mesmo que ele surja quase que somente na justaposição confusa de imagens aparentemente desconexas que nos sobrecarregam diariamente em nossas vidas hiper-midiatizadas. Na noite passada, foi a imagem dos torcedores no estádio chocados e que, com os portões fechados, se reuniram no gramado após a partida e restabelecimento da conexão dos celulares que lhes informavam dos episódios terríveis. Eu percebi que já havia visto essa cena antes, e juntamente com o trabalho que se articulava na minha cabeça, o âncora do noticiário apontou como os torcedores haviam “se refugiado” no estádio, usando o verbo em francês “se réfugier.” A imagem remeteu às várias outras que foram vistas nos últimos mesesna Europa – de refugiados das guerras na Síria e em todo o Oriente Médio reunidos em estádios de futebol, campos ao ar livre ou espaços fechados.
E então houve também os relatos ao longo de toda a noite de parisienses espontaneamente abrindo suas portas para acolher estranhos das ruas repentinamente perigosas. Outra vez o eco poderoso de atos semelhantes de compaixão e generosidade individuais que muitos europeus mostraram aos refugiados ao longo da jornada para longe da violência de seus países de origem.
Essa tensão entre o “eu” e o “outro”, entre hospitalidade e reclusão, foi evidente na resposta do governo francês também: por um lado, foi declarado estado de emergência, que expandiu os poderes das forças de segurança para busca e apreensão – isso significa intrar na casa e vidas das pessoas sem permissão e à força. Por outro lado, a medida extraordinária fechou as fronteiras do país para impedir que os os participantes dos ataques que ainda não haviam sido mortos ou presos deixassem o território francês, bem como evitar a entrada de outros jihadistas.
Não foi a primeira vez que me surpreendi com a imagem de revolta causada pelo fluxo massivo e repentino de imigrandes do Oriente Médio em Paris. Na metade deste ano, no que parecia o auge da crise mas era apenas o começo, os noticiários eram repletos a cada dia com imagens de refugiados desesperados cruzando o Mediterrâneo – alguns morrendo no mar – em barcos paupérrimos. Um dia, enquanto atravessava uma ponte sobre o Sena, me assustei com uma cena parecida: uma massa de pessoas aglutinadas e em pé em um barco que passava ao ar livre – elas agitavam os braços no ar como que pedindo para serem resgatadas. Logo percebi que minha mente havia sobreposto uma imagem residual de um barco lotado de refugiados sobre o que na verdade era um “bateau-mouche” cheio de turistas acenando – “outros”, como os refugiados, porém recepcionados e acolhidos de forma bem diferente.
Essa questão dos “outros” a quem damos boas vindas e os que rejeitamos também chama ao pathos, mas não tem uma resposta fácil. Mês passado, ao ler um livro do filósofo Jauqes Derrida, me assustei com o quanto ele foi preciso ao identificar a hospitalidade como um problema central na era da globalização, um problema que ele também relaciona aoprojeto europeu, e coloca a hospitalidade, ou abertura ao outro, como uma alternativa à imunodade, ou à noção de liberdade negativa como a ausência de ameaçapor parte do outro, como um caminho mais promissor para a democracia liberal em evolução.
A tensão entre essas duas éticas – a de receber o outro versus a de nos protegermos dele – se desenrola neste momento diante de nós aqui na Europa e no Oriente Médio. Mas ambas dependem de uma noção de “eu” e “outro”, ou de hospedeiro e refugiado, que não se aplica mais. Quando milhares de parisienses se tornam refugiados em Paris, como aconteceu ontem à noite, não há mais um “aqui” e “lá” propriamente ditos, não há mais anfitrião e refugiado. E quando milhares de cidadãos franceses e europeus viajam à Síria para se unirem à carnificina lá, não há mais uma variante específica de um “outro” perigoso para ser rejeitado. Os campos de fundiram, mas ainda vivemos em um mundo onde Paris e Síria são locais distintos. Os ataques de ontem à noite e a crise dos refugiados que vaga como um fantasma no plano de fundo mostram que “Paris” e “Síria” são agora dois nomes para o mesmo lugar. O “outro” que tentamos excluir já está entre nós, e se esta vez for minimamente parecida com a última, ele provavelmente não veio de lá, mas daqui mesmo.
Nota da Editora: Judah Grunstein é editor-chefe da World Politics Review e vive na França há 15 anos, oito anos em Paris. O texto foi publicado originalmente no dia 14 de novembro, no dia seguinte aos atentados promovidos pelo Estado Islâmico na capital francesa.